Pego carona nos comentários de alguns amigos e colegas a quem respeito sobre os 60 anos de Madonna.
Não cito os nomes pois não pedi autorização antes de escrever este texto. Mas caso leiam, se reconhecerão rapidinho.
Ironia dos deuses, a garota que revolucionou a música pop e tratou com respeito praticamente artístico a linguagem do videoclipe aniversariou na mesma data em que Aretha Franklin foi animar o universo.
Em um post matutino daquele 16 de agosto de 2018, um amigo já saiu dando uma bordoada direta nas redes sociais: "Toquem Aretha. Não gosto de Madonna." Bastou isso para que uma amiga dele comentasse: "Jane Fonda é quem me representa."
Ok. Ok. Senti quase que um conflito geracional no ar. Afinal, claro que Ms. Franklin é a deusa que deu sua alma ao soul e ao movimento pelos direitos civis dos negros na terra das oportunidades.
Mas, ao mesmo tempo, tentei lembrar onde estava, no início dos anos 80, a atriz filha de Henry e irmã de Peter, feminista e ativista de outras causas sessenta e setentistas. Pensei que filmando em Hollywood, apenas.
Pois foi na primeira metade da década de 1980, no estilo "do it yourself", que a ex-funcionária da Dunkin Donuts passou a perambular pelos clubes underground de NY buscando seu lugar sob os holofotes e entrar nas FMs após um sonhado contrato com alguma gravadora ou selo.
Para isso, apresentava canções pop bobinhas - ou ainda, no estilo "não pense, dance" - como "Holiday" e "Everybody" em pequenas aprensentações, cobrando apenas alguns trocados pelos ingressos de plateias minguadas.
Vale lembrar que a década de 80 foi pop e comercial y punto. A concretização do que Andy Warhol - entre outros - havia previsto anos antes. Supermercados com cara de museus e galerias de arte (pop). Galerias de arte (pop) e museus com cara de supermercados. Todo o cuidado para não errar as portas era pouco. E... Tudo bem, ué?
Além de entender isso, Madonna sempre foi mais performance e letras provocantes sobre comportamentos do que passeatas e música de protesto. E havia naquele momento o canal certo para sua blitzkrieg pop. A recém-nascida Music Television.
A TV dos videoclipes foi passarela para seu desfile de figurinos, tela para a história visual de suas músicas e coreografias, assim como palco para suas apresentações provocativas.
Há quem diga que Madonna é a soma de todas as futilidades do pop. Mas o pop não se limita ao banal. E outra. Será que não sobrou nada dos quase 40 anos (!!!) de carreira da loira ambiciosa?
Falar sobre Britney e Gaga, entre outras, é meio clichê. O que há então? Bem, outro amigo postou à noite uma afirmação. Segundo ele, seria muito provável que, se o clipe de "Justify My Love" - com suas cenas sensuais em alta voltagem - fosse lançado hoje, causaria mais escândalo do que as polêmicas de quando estreiou, em novembro de 1990.
Li isso e minha imaginação foi longe, iluminada por tochas moralistas incendiárias das pessoas de bem participantes da Marcha Com Jesus Para a Moral e os Bons Costumes na Arte Pop, movimento fundamentalista radical que tentaria tocar fogo na sede da MTV Brasil, vista como a casa de satã em São Paulo.
Segui e comentei no post do referido amigo: "imagine então, meu caro, os intermináveis debates ideológicos sobre a letra de "Material Girl", de 1984. Chegasse ao público nos dias atuais, poderia muito bem ser motivo de briga entre adeptos do coxismo e do mebelê. Ambos disputado como possível hino do neoliberalismo torto praticado por aqui.
E mais. Seria tema de seminários promovidos por diretórios acadêmicos do extremo ideológico oposto com títulos como "Material Girl - Uma Visão Marxista no Âmbito da Contemporaneidade a Partir dos Estudos da Escola da Frankfurt".
Quanto à "Papa Don't Preach", de 1986, esta seria uma espécie de ode musical da autoafirmação libertária feminina pós-adolescente dos dias de hoje. Tema ideal para flashmobs das millennials engajadas integrantes do movimento das Garotas Superpoderosas pelo Direito de Decidir O Que Quiserem Decidir.
E fundamentalismo cristão continuaria a não ter sossego. Seria cutucado mais uma vez com as imagens de um Jesus negro no clipe "Like a Prayer", originalmente lançado em 1989. Mas neste caso, o bicho iria pegar feio.
A bancada da bíblia tentaria aprovar uma lei em caráter de emergência apocalíptica que vetasse a canção herege em rádios, TVs, internet, toques de celular e aparelhos de teste de gravidez.
No lado oposto do ringue, o movimento negro poderia bradar contra o racismo dos cristãos brancos durante as manifestações do Dia da Consciência Pop Cristã Negra (favor não confundir com o Dia Nacional da Consciência Negra, que é outra história).
Não faço ideia de como isso terminaria. Mas a possibilidade deste entrevero étnico-religioso existir não é algo tão delirante assim na atual era de extremos que vivenciamos.
E há ainda - entre outras canções - "Vogue", de 1990. Música cujo clipe-estado de arte trouxe para o palco principal do mundo (grato MTV) a dança dos clubes undergrounds de NY frequentados pelo grupo à margem da margem do hype novaiorquino, formado por negros e latinos transgêneros, gays, lésbicas, etc.. Isso quando o etc tinha menos letras do que tem hoje.
Imagine a comunidade LGBTTQI e etc. discutindo a apropriação cultural e o lugar da fala dos trangêneros no videoclipe, que apresenta basicamente dançarinos de voguing, dança baseada em poses de modelos da Vogue, enquanto a rainha do pop canta uma crônica da cena gay e trans dos segregados de NY.
Bem... Parece que Madonna chega aos 60 anos quando o mundo retrocede a 1950, em pleno 2018. Uma espécie de flashforward distópico.
Confira no clipe abaixo, Madonna cantando "Everybody", em 1982, no icônico clube Danceteria.
(Para Patrícia Ferreira - In Memoriam)
ELS - 18/AGO/18